sexta-feira, 29 de maio de 2009

A SINGULARIDADE DE JESUS

A SINGULARIDADE DE JESUS



A SINGULARIDADE DE JESUS



Prof. Dr. Manuel Alexandre Júnior

Coimbra, 10 de Novembro de 2001

Agradeço a honrosa oportunidade de participar neste encontro com uma palavra de reflexão sobre o tema que me foi confiado, “A Singularidade de Jesus”. Sendo este um dos temas mais apaixonantes que ao longo dos anos têm inspirado a minha vida e o meu ministério, é com a maior satisfação que o faço.

Começo esta minha palavra com a história de um impressionante mito ultimamente arquitectado por um grupo de críticos chamado Jesus Seminar. Diz ele o seguinte: “Era uma vez um homem chamado Jesus. Jesus foi um judeu cínico, um mestre de sabedoria que lutou contra o sistema dominante do seu tempo. Ele proclamou um reino de Deus fundado na liberdade, igualdade e fraternidade. Para protegerem o seu poder político e económico, os chefes dos romanos e dos judeus crucificaram-no. Mesmo morto, os seus ensinos estavam tão vivos na alma dos que o seguiram que estes falavam dele como se ainda estivesse vivo...

“Infelizmente, alguns dos novos convertidos à sua causa, pessoas que de facto nunca o conheceram, tomaram as palavras dos discípulos de Jesus a sério e ficaram à espera do seu regresso para estabelecer o reino prometido. Quando viram que Jesus não voltava, ficaram desapontados e começaram a desenvolver a ideia, de origem pagã, sobre uma vida após a morte em que finalmente o iriam reencontrar.

“Entretanto, o sistema dominante da época começou a sentir-se ameaçado pelo crescente movimento de Jesus, e decidiu que, para a sua sobrevivência, também a ele deveria aderir. Os manipulados discípulos de Jesus tornaram-se ‘igreja’ e começaram a construir um dogma rígido que muito pouco tinha a ver com o verdadeiro Jesus da história. Compilaram uma ‘escritura’, produzida muito tempo depois da morte de Jesus por pessoas que falsamente afirmavam conhecê-lo. Alguns desses escritos baseavam-se em fragmentos de facto, mas a maior parte deles não.

“Ignorando quem Jesus foi realmente, o sistema pôs-se a usar estas escrituras para oprimir as pessoas discordantes, e também para oprimir mulheres, minorias raciais e homossexuais. Jesus transformou-se assim em pretexto de um novo sistema dominante. Alguns intelectuais corajosos levantaram-se, entretanto, contra esta igreja. Confrontada pela ciência e pela razão, ela perdeu finalmente o monopólio do poder e começou a ser posta em causa... No auge dessa contestação, surgiu um pequeno grupo de críticos ousados e aventureiros chamado Jesus Seminar, que finalmente limpou a igreja dos mitos a que só gente mentecapta e supersticiosa ainda adere”.

Que estranha lenda esta! E com que requinte ela foi congeminada! Dá para perguntar mais uma vez: Quem foi realmente Jesus? Que obras realizou? Qual o conteúdo e a força do seu ensino? Qual o sentido da sua vida e da sua morte? O que me proponho aqui fazer não é um estudo exaustivo de resposta a estas questões. Seria impossível em tão pouco tempo. Se o apóstolo João disse que nem no mundo inteiro caberiam os livros que se teriam de escrever para contar tudo o que o Senhor Jesus disse e fez, quem sou eu para esgotar em menos de uma hora tão sublime tema? Limitar-me-ei, sim, a assinalar alguns traços que marcam a singularidade da sua pessoa, do seu ensino e da sua obra. Não o vou, porém, fazer de forma narrativa ou descritiva, pois me parece que todos aqui conhecem bem a sua história. O que pretendo é reflectir convosco sobre os fundamentos desta maravilhosa história e pôr-vos de algum modo a reagir a algumas das questões que hoje mais ocupam os que estudam a vida e obra de Jesus de Nazaré.


I – SINGULARIDADE DA VIDA E OBRA DE JESUS

Um dos maiores problemas da ciência pós-moderna é o de procurar e não encontrar o centro do universo, aquilo que justifica e une todas as forças da natureza. Os filósofos pensam que todas as coisas são relativas, e muitos teólogos proclamam um pluralismo ideológico fundado na crença de que nenhum ponto de vista religioso se deve considerar melhor do que os outros. Mas nós os cristãos, que abraçamos a fé apostólica e evangélica, sempre afirmámos e continuamos a afirmar a centralidade da pessoa e obra de Jesus Cristo em toda a ordem da criação.

O Cristianismo é único entre todas as religiões da terra, e a razão da sua singularidade está na figura histórica do seu centro: Jesus Cristo. O hino com que abre o Evangelho segundo João proclama esta verdade: “todas as coisas foram feitas por Ele...” (1:10). Proclama-a também o grande hino de Paulo na carta aos Colossenses, que diz: “todas as coisas foram criadas por Ele, nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, as forças espirituais, os domínios, as autoridades e os poderes. Tudo foi criado por Ele e para Ele...É Ele que dá consistência a tudo o que existe” e é por meio dele que se fará “a reconciliação consigo mesmo de tudo o que existe no universo” (1:16-17, 20). Conforme afirma e sustenta o apóstolo João, aquele que é o centro do universo é “a Palavra que se fez carne e habitou entre nós” (1:14). E Paulo acrescenta: Esse Jesus, “que por natureza era Deus,...se fez homem, viveu como homem, se humilhou a si mesmo, e obedeceu até à morte”, é o mesmo Cristo perante quem “todo o joelho se dobrará, no céu, na terra e debaixo da terra, e toda a língua confessará que Jesus Cristo é o Senhor para glória de Deus Pai” (Fil. 2:6-11).

Seria estranho dizer a um cristão antes do século XVIII que ele precisava de descobrir Jesus nos evangelhos. Se Jesus não estava perdido, como precisava o cristão de o encontrar? Se os evangelhos são o relato mais simples, claro, natural e verdadeiro da pessoa e obra de Jesus, que outras fontes nos poderiam dar dele um retrato mais fiel? Os evangelhos foram sempre, ao longo de mais de dezassete séculos, universalmente aceites como livros divinamente inspirados e inteiramente dignos de confiança. O relato que dão de Jesus é portanto uma história verdadeira. Tanto mais que os seus autores tiveram um contacto directo com os eventos ou com as fontes primárias que os descrevem. Mateus e João eram discípulos de Jesus. Marcos registou as memórias de Pedro. E Lucas colheu directamente os eventos que narrou de muitas testemunhas oculares e outros discípulos de Cristo (Luc. 1:1-4).

Mas, com a vinda do Iluminismo, começou a instalar-se a dúvida em torno dos principais temas da fé cristã. A credibilidade dos Evangelhos foi posta em causa. Insinuou-se que estes não eram a história verdadeira de Jesus, mas apenas histórias acerca de Jesus; histórias escritas mais tarde do que realmente foram, e entretanto impregnadas de mitos, lendas e tradições várias. Insinuaram os mentores desta nova ideia que o verdadeiro Jesus de Nazaré se oculta por detrás de uma enorme massa de informação duvidosa, que Ele não foi mais do que uma importante figura religiosa do seu tempo e que a real imagem dessa figura precisa de ser redescoberta. E que critérios usaram para simular essa descoberta? Tudo o que lhes soasse a sobrenatural teria de ser eliminado ou então reinterpretado da forma que ao naturalista parecesse aceitável.

Muitas foram as tentativas de reconstrução da vida de Jesus, a partir de Reimarus (1694-1768), para quem Jesus não era mais do que um sábio moralista que procurou cumprir os ideais do reino, e que por engano acreditou ser o Messias. Contam-se entre essas obras, numa primeira fase, as vidas de Jesus escritas por Strauss, Renan e Schweitzer; obras de uma crítica radical espantosamente férteis nas questões que levantaram, mas para as quais até hoje não avançaram com respostas científicas palpáveis que satisfaçam ou convençam, nem mesmo a comunidade académica.

À medida que a fé nos Evangelhos ia sendo minada, sugeria-se em alternativa a distinção teológica entre o Jesus histórico e o Cristo da fé . Em 1926, Rudolf Bultmann começou a sugerir que quase nada se conhecia do Jesus que vivera há dois mil anos sobre a terra. A distinção que era necessário fazer era entre o Jesus histórico, de quem tão pouco se sabia, e o Cristo da fé, que nada mais era do que o produto de uma construção imaginária e idealizada da igreja. Dizia ele, num artigo publicado nos anos quarenta, que devemos pegar nos primitivos ‘mitos’ cristãos da encarnação, da divindade, da morte pelo pecado e da ressurreição, e traduzi-los em categorias aceitáveis ao homem do século XX. Com este seu novo programa hermenêutico de desmitologização deixava Bultmann claras duas coisas: que esses ‘mitos’ (entre aspas) não são literalmente verdadeiros, mas podem ser ponto de partida para deles se tirar alguma lição moral ou espiritual; que os evangelhos apenas nos dão alguma escassa informação da vida, morte e crucificação de Jesus; que o Jesus histórico se oculta por detrás da pregação da igreja, miticamente impregnada de um maravilhoso cristão sem fundamento de verdade.

Depressa a proposta hermenêutica de Bultmann foi contestada por alguns dos seus discípulos, entre eles Käsemann, que o acusou de aderir a uma moderna forma de gnosticismo – a um sistema intelectual de fé sem fundamento histórico e em risco de perder Jesus por completo – e resolutamente afirmou que a fé cristã se não pode divorciar das suas raízes históricas na pessoa humana de Jesus. Na linha desta nova caminhada em busca do Jesus histórico, encontram-se também Günther Bornkamm e James Robinson que pouco lhe acrescentaram.

A comunidade dos críticos que representam a linha do naturalismo filosófico continua hoje profundamente dividida no que respeita à obra de Cristo e aos seus ensinos. Já lá vai o tempo em que os ideólogos do liberalismo teológico e histórico falavam sem relevante oposição nas cátedras da academia. A mais recente vaga de estudos sobre o Jesus da história, também por vezes chamada a ‘terceira caminhada em busca do Jesus histórico’, acentuou ainda mais as marcas dessa desunião. Nem sequer concordam sobre o que fazer, o modo como o fazer e a que resultados chegar sobre a pessoa de Jesus. Ao porem de parte a única fonte credível de informação – os Evangelhos –, cada grupo chega ao fim com uma proposta de reconstrução diferente sobre a história de Jesus. Uns definem Jesus como um agente político de mudança, outros como o anunciador de uma filosofia estranha à semelhança dos filósofos cínicos do mundo greco-romano, outros ainda como um zelote, um mágico, um profeta moralista, um camponês confuso da Galileia, um ideólogo, um marxista ou um charlatão ; mas, o maior número o define, mesmo nas alas do liberalismo, como o grande mestre, o Messias e o imaculado Filho de Deus .

Sublinha Craig Evans que os pressupostos desta terceira onda liberal de investigação diferem da velha e nova buscas do Jesus histórico em vários aspectos. Esta novíssima vaga de pesquisa representa, de facto, uma ruptura muito grande com os pressupostos e métodos que caracterizaram os primeiros dois séculos de investigação sobre o Jesus histórico.

Primeiro, no que concerne à problemática de mito e milagre, a maior parte das obras mais recentes sobre o Jesus histórico pouca ou nenhuma referência faz ao problema do mito ou à hermenêutica bultmaniana da desmitologização. A investigação sobre a pessoa e a obra de Jesus reflecte ultimamente um maior optimismo quanto ao facto de os evangelhos conterem os dados necessários para uma reconstrução inteligível do ministério de Jesus. Até os milagres são agora tratados com seriedade e aceites como parte integrante do ministério de Jesus. As histórias dos milagres são cautelosa e realisticamente discutidas, interpretadas em contexto e, na maior parte dos casos, sem qualquer referência específica à hipótese de mito. Franz Mussner, Alfred Suhl, René Latourelle e muitos outros, argumentam a historicidade dos milagres de Jesus e defendem a sua realização como factos indesmentíveis.

Em segundo lugar, no que respeita ao valor histórico dos evangelhos, cada vez mais se olha para estes como fontes históricas úteis e dignas de confiança. O extremo cepticismo que durante tanto tempo dominou a investigação relativa aos Evangelhos já passou. Figuras tão representativas da ala racionalista e liberal como Sanders e Marcus Borg, concluíram afinal que é possível traçar pelo Evangelho uma imagem razoavelmente fidedigna do Jesus histórico. Curiosamente, há trinta e cinco/quarenta anos Bultmann enfatizava a diferença entre o Jesus histórico e o Cristo da fé, como se de duas realidades distintas se tratasse; hoje, pelo contrário, enfatiza-se e explora-se a consciência da unidade entre o Jesus histórico e o Cristo do evangelho.

E não é só a comunidade liberal que se vem desagregando e progressivamente envolvendo em inevitáveis contradições. É toda uma plêiade de estudiosos cristãos que com eles estudaram e das suas teses se demarcaram; investigadores libertos de preconceitos, prejuízos e pressupostos filosóficos ou ideológicos; homens e mulheres que nas mesmas universidades e escolas de teologia cientificamente investigam e ensinam, e que em resultado do rigor científico do seu trabalho e da abertura das suas mentes para a verdade, acabaram por reconhecer no conteúdo integral dos Evangelhos a fonte mais segura e digna de confiança para a compreensão da pessoa e obra de Jesus.

II – SINGULARIDADE DO ENSINO DE JESUS

A par desta investigação em busca da vida e obra do Jesus histórico, desenvolveu-se também uma outra linha de investigação em busca das reais palavras de Jesus e o seu ensino. Durante o século XIX, quando os Evangelhos estavam a ser gradualmente postos em causa como documentos historicamente dignos de confiança, e os elementos sobrenaturais da vida de Jesus se passaram a tratar como mitos e lendas, a atenção dos investigadores voltou-se do que Jesus fez para o que realmente disse. Esperavam eles encontrar nos seus ditos a face de um Jesus meramente humano, que apenas ensinou seus discípulos a amar a Deus e servir o próximo. Mas, com o abandono da velha questão liberal do Jesus histórico também esta proposta fracassou, só vindo a ressurgir nos anos cinquenta da século passado com o renovado esforço de encontrar na suposta tradição da igreja o que Jesus realmente disse, o que verdadeiramente ensinou. Multiplicaram-se os critérios, as propostas e os métodos, mas os resultados foram, também aqui, praticamente nulos.

Mais recentemente, formou-se um grupo de estudiosos revisionistas chamado “Jesus Seminar”, para decidir colectivamente por voto que partes dos Evangelhos são realmente os ditos que representam o ensino de Jesus. O seu objectivo foi negar a historicidade daquele que os cristãos adoram, reafirmando as teses de mais de cem anos de cepticismo liberal. As suas conclusões, publicadas em finais de 1993 na obra The Five Gospels: What did Jesus Really Say?, pouco mais reflectem do que um claro retorno aos métodos e conclusões racionalistas do século XIX. Questiona-se mais uma vez a autenticidade dos Evangelhos. Rejeita-se e põe-se em causa quase tudo o que os Evangelhos afirmam que Jesus disse. Tenta-se fazer o mesmo com o que Jesus realmente fez.

Para o fundador deste movimento e o seu núcleo mais duro é necessário que a fé cristã seja arreada do seu pedestal e substituída por um novo e universal espírito de fraternidade humanista e secular, mais ou menos enquadrada na linha geral de pensamento que inspira o movimento da Nova Era; uma nova ideologia pagã onde não há mais lugar para Cristo, nem para o evangelho de Cristo, nem sequer para a tradição cristã. As conclusões deste Seminar foram reunidas e têm vindo a ser divulgadas por seus mentores em vinte e uma teses, das quais, a título de curiosidade, destacamos as doze seguintes:

1. Não existe um deus exterior ao mundo material.

2. O darwnismo matou de vez a doutrina de uma criação especial conforme a narrativa bíblica.

3. A desliteralização da narrativa bíblica das origens acabou de vez com o dogma do pecado original.

4. Os milagres de Jesus são uma afronta à justiça e integridade de Deus.

5. Jesus não é divino.

6. A ideia de Jesus como redentor é arcaica.

7. O nascimento virginal de Jesus é um insulto à inteligência moderna.

8. Jesus não ressuscitou dos mortos.

9. Não existem mediadores entre Deus e o homem.

10. O reino de Deus é uma viagem sem fim e uma perpétua odisseia.

11. A Bíblia não contém modelos objectivos de conduta.

12. As reconstruções da pessoa e obra de Jesus podem ser sempre modificadas.

Felizmente que a influência destes críticos radicais se vai aos poucos diluindo, e poucos são os que, no seio do Cristianismo, hoje aderem às suas ideias. Como atrás referimos, é cada vez mais forte a corrente dos que em toda a parte se erguem na defesa das verdades que o evangelho de Cristo encarna. Nunca como agora, tanto na academia como fora dela, soou com tanto vigor a voz dos que com as armas da ciência e da sabedoria crítica solidamente rejeitam os seus infundados pontos de vista. Os últimos dois séculos têm-nos revelado afinal o fracasso de quem procura dar sentido aos Evangelhos, esvaziando-os da sua essência, esquartejando-os, e tudo fazendo para deles remover a dimensão sobrenatural da sua mensagem.

Os Evangelhos são dignos de confiança porque eles foram inspirados por Deus. Como dizem os bispos do Vaticano II em seu documento sobre a revelação divina, Dei Verbum, o Espírito Santo é o autor primário da Escritura, e a verdade que ela ensina é fiel e sem erro tendo em vista a nossa salvação. Ao defenderem com tanta firmeza a historicidade dos Evangelhos, eles afirmaram que estes são os fieis transmissores do que Jesus verdadeiramente ensinou e fez.

É nas Escrituras do Novo Testamento que encontramos o paradigma do verdadeiro Cristianismo. Não nessas escrituras truncadas que apenas nos dão a imagem de um Cristianismo completamente desfigurado; mas na versão completa da Escritura que os nossos pais tão fielmente reconheceram, conservaram e amaram, e que nós, por imperativo de fé, haveremos de continuar a honrar e proclamar.

Num tempo de tão claras mudanças como é o nosso; num tempo em que as novas revoluções vertiginosamente se fazem sentir em todas as áreas da vida – na ciência, na filosofia e nas comunicações; num tempo em que o maravilhoso pagão, com todos os sub-valores da contracultura que representa, parece querer afirmar-se como alternativa à fé cristã, é necessário retomar em pleno o paradigma universal que Cristo inspirou e os apóstolos encarnaram, para de novo fazer germinar em nossa cultura os princípios e valores do Evangelho. Nós não fomos chamados a reinventar a fé cristã, mas sim a ser fieis às suas origens.

É a fé antiga que tem futuro e não a fé desgastada pelas inúmeras transfigurações que os avanços e recuos ideológicos da nossa história determinaram. E esta fé antiga é, numa só palavra, Cristo. Jesus Cristo é o evento primordial da fé cristã. Foi nele que Deus, o Deus eterno, se fez carne com o fim específico de entrar na história, de penetrar as fronteiras da história para recuperar a sua criação mediante a vitoriosa derrota dos poderes do mal.

III – O SENTIDO DA VIDA E OBRA DE CRISTO PARA NÓS HOJE

O meu sobrinho gostava muito de jogar com puzzles. Antes de começar a reunir as peças e colocar cada uma no seu lugar, ele tinha uma preocupação: encontrar a chave, a imagem central em torno da qual todas as demais peças faziam sentido. Uma vez encontrada a chave, o resto do puzzle facilmente se ia resolvendo. Ora na fé cristã a chave do puzzle é a obra de Cristo. O que primeiro nos é necessário é uma sólida compreensão do sentido da sua vida e obra. Os demais elementos da fé todos depois rapidamente se ajustam.

A experiência ensina-me que eu nem sempre tive uma visão tão abrangente e completa de Cristo como devia. Não por que eu não procurasse ser um crente fiel e não tivesse uma visão correcta da verdade bíblica; mas porque a abertura da minha visão o não permitia. Foi necessário descobrir primeiro o carácter universal e cósmico de Cristo. Só então me foi dada a chave para abrir a porta de um rico arsenal de tesouros espirituais, e me foi concedido ter uma visão global do mundo e da vida na perspectiva cristã correcta.

Diz Robert Webber que esta compreensão bíblica e clássica de Cristo é a resposta para os dois grandes problemas que o pós-modernismo hoje nos coloca. Primeiro, a ciência anda à procura de um princípio unificador, e o modelo bíblico da fé cristã afirma a unidade e a coerência de todas as coisas em Cristo (Col. 1:16-20). Segundo, ao contrário da doutrina moderna da bondade humana, o pós-modernista reconhece a presença do mal sem ter para ele uma resposta adequada ou definitiva, e o Evangelho anuncia em Cristo a derrota do mal pela sua morte e ressurreição.

O Cristo que o modelo bíblico anuncia e consagra é, repito, o centro do universo. É Ele quem dá sentido à vida e quem soberanamente lida e ensina a lidar com o problema do mal. É Ele, que “vê a presença e o poder do mal na sociedade como o impacto do pecado original que permeia todas as estruturas da existência. Mas é também a doutrina dele que rejeita ‘a bênção original’ do pos-modernismo, que ensina que milhões de anos de evolução irão conduzir a criação e a humanidade à sua perfeição”. Para o Cristianismo bíblico, acrescenta Webber, “a bênção original é o segundo Adão, aquele que pelo seu evento redentor entrou na história para reverter os efeitos do pecado original. Foi Ele só que amarrou, destronou, e ultimamente destruirá todos os poderes do mal e restaurará a ordem criada”.

Como justamente observa Robert Webber, raramente a igreja apresentou uma visão holística ou integral da obra de Cristo; uma visão com ênfase simultânea no seu sacrifício vicário, na sua vitória sobre os poderes das trevas, e no exemplo que Cristo nos deu a seguir. E é essa visão redutora que, por defeito ou excesso, justifica os principais momentos de crise por que passou a igreja de Cristo no longo percurso da sua história. “A interpretação dominante da obra de Cristo nos primeiros mil anos...é a proclamação de que a sua morte e ressurreição constituem uma vitória sobre os poderes do mal.” Durante a Idade Média, uma época pouco sensível aos poderes do mal, “a interpretação da obra de Cristo como sacrifício eclipsou e acabou por substituir a interpretação do Christus Victor”. Na Reforma protestante, embora se continuasse a enfatizar o carácter sacrificial da morte de Cristo, este sacrifício era entendido como oferta necessária para satisfazer as exigências da santidade de Deus, ultrajada e ofendida pelo pecado. Ainda na Idade Média, surgiu com Abelardo uma terceira interpretação da morte de Cristo exclusivamente centrada no seu exemplo de humildade e renúncia até à morte, tal como o viriam a fazer os liberais dos nossos dias. Dizem eles que a missão profética de Jesus não foi compreendida e que por isso foi injustamente crucificado; que a sua morte não foi uma vitória sobre o maligno nem a satisfação da justiça divina; que apenas foi uma influência positiva para a sociedade como exemplo de altruísmo e serviço ao próximo.

Ainda hoje o homem tende a aceitar Jesus ou como modelo, ou como Senhor, Mediador e Salvador, mas não como as duas coisas. Uns insistem em seguir o seu exemplo de amor e solidariedade social, mas ignoram a sua Cruz. Outros enfatizam a sua morte pelos nossos pecados e a sua vitória sobre o maligno, mas falham em imitar as suas acções. Esquecem-se de que o Cristianismo só é forte e a fé vitoriosa quando abraçamos Cristo na sua totalidade e a Ele integralmente confiamos o destino das nossas vidas.

Desde o preciso momento em que Cristo subiu ao céu, a mensagem do Evangelho se espalhou rapidamente por toda a parte. Em três séculos, aquele pequeno grupo de cristãos que testemunhou a ressurreição de Cristo e o Pentecostes cresceu tanto que conquistou o mais poderoso império pagão da antiguidade. O fervor do seu testemunho encheu a Europa, as Américas, a África e a Ásia. Esses cento e vinte homens com quem Cristo fundou a sua igreja transformaram-se nos quase dois mil milhões que hoje habitam todos os países da terra habitada. O Cristianismo transformou-se na primeira religião verdadeiramente global, e cresce a um ritmo duas vezes superior ao da população do mundo; muito mais, infelizmente, nos países do Terceiro Mundo do que nesta velha Europa em que quase tudo começou.

Mas, não tem conta o número dos que se afirmam cristãos sem viverem o que Cristo ensinou e levarem a sério todo o conselho de Deus para as suas vidas. Como pôde o terrível massacre de seis milhões de Judeus ter lugar no coração desta velha Europa cristã? Como foi possível ocorrer uma tão horrenda carnificina tribal no Rwanda, onde se diz que 80% da população de Hutus e Tutsis eram cristãos? Como entender as terríveis lutas fratricidas entre croatas católicos e sérvios ortodoxos, ou entre católicos e protestantes na Irlanda? O século XX foi tudo menos a concretização de uma utopia. Não foi um século de progresso, mas de retrocesso: as duas guerras mundiais, com cerca de uma centena de milhões de mortos; o massacre de milhões de arménios; a chacina de milhões de chineses; as permanentes tensões em todos os continentes; a constante ameaça de uma catástrofe nuclear; as inúmeras mortes provocadas por doenças novas e sem controle; a desintegração dos valores cristãos, e a pouca esperança quanto ao dia de amanhã. E o século XXI, que mal desponta logo nos atira para uma guerra de consequências inimagináveis, tão ocultas como o inimigo que, sem dar a cara, mata milhares de vítimas inocentes e por toda a parte semeia o terror? Os horríveis atentados de 11 de Setembro são apenas mais um sinal do poder cósmico do mal; um poder de que o Evangelho de Cristo é bem consciente, bem como do seu debilitante efeito sobre a vida humana, tanto nas estruturas política, económica, social, e institucional, como nas estruturas espiritual e familiar. Tudo nos indica que à medida que o Cristianismo se afasta do paradigma bíblico original, ele se descristianiza e conforma com um paganismo latente que teima em ressurgir, acabando por cair no vazio moral e espiritual da contra-cultura da secularização.

O Jesus histórico e o Cristo da fé são uma e a mesma pessoa. Importa desmascarar o mito ideológico da sua separação; o mito que a suposta investigação moderna reinventou. Sim, Jesus Cristo é o nosso único Senhor, Salvador e Mediador, como também é o supremo exemplo das nossas vidas. É necessário que todos reconheçam que Jesus Cristo é Senhor, e que é por Ele que passa a redenção do universo, incluindo todas as estruturas da existência. Pois, como escreve o apóstolo Paulo aos Colossenses, “aprouve a Deus por Jesus Cristo reconciliar consigo mesmo todo o universo, na terra como nos céus, havendo feito a paz pelo seu sangue, derramado na cruz” (1:20).

O resultado da obra de Cristo é que o reino de Deus se manifestou e está entre nós. O reino de Deus era o tema central da sua mensagem; um reino que encarna três grandes verdades: Cristo é o Rei e Senhor de todas as coisas; nós, que O confessámos como único Salvador, Mediador e Senhor, somos os seus súbditos; a área territorial do seu domínio é a nossa vida e o universo inteiro. É este o Verbo que se fez carne, que morreu, foi sepultado e ressuscitou; que pelo Espírito está presente na igreja, que voltará segunda vez para consumar a obra do seu Reino e para viver sempre connosco ao seu lado em novos céus e nova terra em que habita a justiça e em que a paz jamais será quebrada.

A carta ao Hebreus começa com uma profunda reflexão sobre a pessoa e obra de Cristo. Jesus Cristo é a face humana de Deus, o reflexo da sua glória e a expressa imagem da sua pessoa. Foi Ele o Criador do universo, e é Ele quem sustenta todas as coisas com o poder da sua palavra. Jesus Cristo é o encarnado Filho de Deus que veio ao mundo com o objectivo expresso de redimir a humanidade. A razão primária da sua vinda ao mundo não foi realizar milagres e ser exemplo de boas obras. Esse foi o resultado natural da sua vida sem pecado. O seu grande objectivo foi a morte na cruz, “para que pela graça de Deus Ele provasse a morte por todos” (2:9). Três palavras-chave explicam no capítulo 2 o processo pelo qual o nosso Salvador resolveu de vez o problema do pecado e da morte eterna: destruir, libertar e propiciar. Pela sua morte na cruz Jesus destruiu as obras dos diabo, libertou-nos do pavor da morte e da escravidão do pecado, e proporcionou o sacrifício através do qual a justiça de Deus é satisfeita e os nossos pecados são perdoados (2:14-17). No primeiro capítulo desta carta, a nossa atenção é dirigida para a primeira criação de Deus: Jesus como o Criador deste universo imenso. No segundo capítulo, temos o acto criador de uma nova vida em Cristo. Primeiro, a sua obra antes de haver sido feito homem. Depois, a sua obra em plena identificação connosco.

Como diz o autor desta carta, Jesus Cristo fez-se homem com o fim de resolver de vez o problema radical da humanidade. Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem fora feito um pouco inferior aos anjos, fora coroado de glória e de honra, recebera de Deus a autoridade de exercer domínio sobre todas as coisas. Como coroa da criação de Deus, o homem teve aos seus pés o universo inteiro, pois nada Deus deixou fora do seu domínio. Contudo a entrada desse terrível acidente, que é o pecado, alterou todas as coisas. Como diz o autor da carta, “ mas o certo é que ainda não vemos que todas as coisas lhe estejam sujeitas” (2:8). O homem perdeu por completo a sua capacidade de controle sobre a natureza. Escapa-lhe o governo dos ventos e dos mares. À mercê dos eventos e circunstâncias que o ultrapassam, a morte o intimida e apavora, não encontra resposta para os grandes ‘porquês’ da existência, e não entende o sentido último da vida.

A encarnação de Jesus Cristo surge, portanto, no horizonte da humanidade como a resposta de Deus para a solução do dramático problema humano. Jesus Cristo é o segundo Adão por cujo “acto de justiça veio a graça de Deus sobre todos os homens para a justificação que dá vida. Porque, assim como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também pela obediência de um só muitos se tornarão justos” (Romanos 5:18-19). De sorte que a vinda de Cristo e a instauração do seu reino não é uma mera intrusão no mundo secular ou uma componente espiritual que lateralmente acompanha a vida. É, sim, o centro através do qual a vida se entende, e no qual o verdadeiro sentido da vida se encontra. Jesus Cristo é verdadeiramente a resposta de Deus para as questões fundamentais da vida humana. Ele é “o Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai senão por Ele” (João 14:6).

A encarnação, a morte e a ressurreição de Cristo são os temas fundamentais de uma fé vitoriosa. Quando Paulo escreveu aos Efésios, falou da convergência ou recapitulação de todas as coisas em Cristo: “Ele desvendou-nos o mistério da sua vontade, e o plano generoso que tinha determinado realizar por meio de Cristo. Esse plano consiste em levar o universo à sua realização total, na plenitude dos tempos, fazendo convergir todas as coisas sob a soberania de Cristo, tanto as que estão nos céus como as que estão sobre a terra” (Ef. 1:9-12). Deus não salva apenas as pessoas. Pela sua vida e obra consumada na cruz e na ressurreição, o universo inteiro e toda a história, desde a criação do mundo até aos novos céus e a nova terra, foram reunidos em Cristo. “Quando Deus criou o mundo, Deus olhou para a sua criação e declarou que tudo era bom”. Deus agradou-se em tudo o que do nada fora trazido à existência, pois isso era o produto da sua própria acção criadora. Deus criou o tempo, o espaço, o som, a cor, a beleza, a ordem, a vida, os animais, o homem – todas as coisas. A visão da sua obra deu a Deus grande prazer. Mas, por força do poder do maligno, a harmonia e a beleza da obra da criação divina foram profundamente afectadas e desfiguradas. O ódio, a avidez, o caos e a desarmonia devastaram a criação. E, embora a criação permanecesse boa em si mesma, o poder do mal que operava mediante pessoas e instituições sociais...atraiu para a criação a dor e a miséria da desumanização. Deus podia ter destruído a criação e começado de novo. Mas não. Ele escolheu fazer-se a criação. Deus uniu-se à humanidade e tomou um corpo ‘sujeito à morte’ a fim de derrotar a consequência do pecado, que é a morte.” Quando Adão e Eva caíram, os demónios do mal foram disparados contra a ordem da criação (Efésios 2:2). Deterioraram-se as instituições sociais, violentaram-se as pessoas, contaminou-se o ambiente, mataram-se vítimas inocentes, afronta-se a humanidade com o risco de um holocausto nuclear e os horrores de um terrorismo sem face totalmente diabolizado e demonizado. Os poderes do mal privaram a terra da sua pureza e harmonia, e transformaram a ‘bênção original’ em maldição universal. Mas Cristo, o segundo Adão, quebrou os grilhões do pecado pela sua obediência ao Pai e reverteu os efeitos da queda pela sua morte. Como diz o apóstolo Paulo, “a própria criação será libertada da sua escravidão e da destruição para tomar parte na gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Romanos 8:21). “A criação e a queda não são objectos intelectuais de mera inquirição. São, sim, partes da história da existência, partes da história que apenas pode ser verdadeiramente entendida à luz do Christus Victor. Pois foi mediante Cristo que os poderes do mal sofreram uma derrota irreversível!” É por Ele que nós vivemos na esperança escatológica da inteira e final convergência ou recapitulação de todas as coisas. “Esta esperança, esta expectativa da renovação de todas as coisas em Cristo é também a visão que a sua igreja vive e inspira...O mal não é a palavra final na existência humana. A palavra final é Jesus Cristo. A visão de novos céus e nova terra não é fantasia. É a realidade, a verdade. E, por conseguinte, ela é a esperança que sustenta e alimenta tudo quanto fazemos como cristãos.”

Em suma, acrescenta Robert Webber, a mensagem do Cristo que destruiu as obras do diabo, nos libertou da escravidão da morte e fez propiciação pelos nossos pecados, “fala às origens de todas as coisas, resolve o problema do pecado, afirma um Deus que está intimamente ligado à ordem da criação, responde à busca humana de sentido, providencia uma esperança para o futuro. Esta mensagem é o mistério de ‘Deus...reconciliando o mundo consigo mesmo em Cristo, não tendo em conta os seus pecados’ (II Cor. 5:19)”. Esta é a mensagem de boas novas para a sociedade pós-moderna: Deus visitou a sua criação, e fez-se parte dela em Cristo a fim de definitivamente promover a sua restauração.

Uma das grandes conclusões da ciência pós-moderna é a de que não existe um centro para o universo, um centro que tudo justifica e explica. Os filósofos concluem que todas as coisas são relativas. Com base neste conceito de relativismo, a teologia liberal procura justificar a sua proposta de ‘pluralismo’ ideológico, na crença de que nenhuma religião ou doutrina religiosa se deve considerar melhor do que as outras. Mas como evangélicos nós sempre afirmámos e continuamos a afirmar a interpretação apostólica da centralidade de Cristo. Esta mensagem é a estrutura de fé pela qual nós vemos, interpretamos e entendemos tanto o mundo como a vida. Deus em Cristo fez-se parte da criação para remi-la. E também por esta razão Ele é o centro do universo, aquele que criou e dá sentido à vida, aquele que pela sua encarnação, morte e ressurreição reconciliou todas as coisas consigo mesmo, para glória de Deus Pai.

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